A chegada das «Bolas de Berlim» a
Portugal
Irene Flunser Pimentel
Em 6 de Outubro de 1935, chegavam a Portugal, no navio alemão «Kap
Arcona», vindo de Hamburgo, Ruth Davidsohn (por casamento, Ruth de Carvalho), a
irmã e os seus pais, uma antiga química e um consultor de galerias de arte.
Como partiram precocemente da Alemanha nazi, devido às perseguições que o
regime lhes moveu, por serem judeus, conseguiram trazer os seus móveis e
inúmeros haveres, num contentor («Lift»),
despachado, em Setembro desse ano, de Berlim. Escolheram Portugal como terra de
exílio, devido aos factos de os tios de Ruth, Hugo e Lily Losser, já aí se
encontrarem, de ser um país da Europa, sem fronteiras com a Alemanha nazi, e ao
mesmo tempo um porto de partida à beira do Atlântico, em caso de emergência.
Além disso, Portugal também lhes pareceu simpático, pois não havia ainda
dificuldades burocráticas, graças a um acordo luso-alemão de 1926 que
dispensava vistos nos passaportes, e os estrangeiros podiam então trabalhar por
conta própria, bem como obter a autorização de residência, por um ano,
prorrogável. O tio de Ruth trabalhava, por exemplo, em importação de máquinas
automáticas de chocolates, com a fábrica chocolateira «Favorita», tendo a
primeira vindo no «Lift» da família
Davidsohn.
Com parte do
dinheiro trazido, o pai de Ruth comprou uma loja de relógios, mas, o negócio
falhou, quando de tornou difícil importar relógios da Suíça e da Alemanha,
devido ao início da guerra. A família viveu então dificuldades financeiras e o
pai meteu mãos à obra, vendendo, de forma ambulante, «quinquilharias» (óculos
de sol e lâminas de barbear), enquanto a mãe começou a fazer «bolas de Berlim»
caseiras, com compota de freutos vermelhos, distribuídas pelo pai e pelas duas
filhas, entre os elementos da colónia alemã de Lisboa, que não tinham então
qualquer «problema» em comprar a judeus.
Muitos dos refugiados que vieram, para Portugal, nos anos trinta, e
sobretudo na vaga do Verão de 1940, tiveram de improvisar para ganhar a vida.
Devido à crise financeira de 1929, vários governos, incluindo o português,
introduziram diplomas que dificultavam o acesso dos estrangeiros a licenças de
trabalho. No caso de Portugal, a primeira legislação limitativa do trabalho aos
estrangeiros foi instituída em 1930, prevendo multas para os que se empregassem
por conta de outrem. Depois, os sucessivos governos de Salazar geriram, de
forma nacionalista, a potencial concorrência estrangeira no débil mercado de
trabalho português.
No preâmbulo de uma lei, que, em Julho de 1933, proibia, aos
estrangeiros, o trabalho por conta de outrem, nos ramos onde se verificasse
desemprego, esclarecia-se que o diploma se devia à «dolorosa situação» dos
«desempregados da classe comercial» e não visava dificultar a vida dos
estrangeiros em Portugal, mas apenas impedir que estes tirassem «o lugar aos
empregados portugueses». Outro decreto impôs, no mesmo ano, que as empresas,
tanto nacionais como estrangeiras, só poderiam empregar estrangeiros com a
autorização especial do Subsecretariado de Estado das Corporações e da
Previdência.
Mas, nessa época, Portugal não era obviamente um país de imigração e só
uma minoria de estrangeiros aqui exercia a sua profissão, habitualmente por
conta própria, em empresas de import-export,
ou como representantes de empresas estrangeiras. Desde que não competissem com
os portugueses, também podiam exercer uma profissão liberal. Já os funcionários
públicos e operários careciam, a partir de 1936, de uma licença laboral que só
lhes era concedida no caso de não haver nenhum cidadão português disponível
com qualificação equivalente.
Tal como a família de Ruth de Carvalho foi provavelmente a introdutora da
popularidade das Bolas de Berlim, também refugiados búlgaros influenciaram a
feitura do Iogurte, na pastelaria «Casa Veneza», situada na Avenida da
Liberdade em Lisboa. «Charcutaria Suiça», na Rua do Ouro, perto do Rossio,
propriedade de um refugiado judeu, com autorização de residência, começou, no
final da guerra, a comercializar o «Yogurte Oriental», como refere um anúncio
da revista Filmagem (20/6/45). Os
bolos húngaros foram igualmente introduzidos, por alguns refugiados, que os
puseram à venda na pastelaria «Império», nas Escadinhas de Santa Justa, e no
café «Palladium», na Praça dos Restauradores.
Ilse Losa (1913-2006), natural de Osnabrück, fugida à Gestapo e chegada ao Porto, em 1934,
começou por ser governanta de crianças e dar lições privadas de alemão, ante de
se tornar numa conhecida escritora. Um advogado de Görlitz abriu a primeira
lavandaria do Porto e uma licenciada de Berlim foi costureira, nos seus
primeiros anos de exílio, enquanto Kurt Saalfeld, director comercial da editora
alemã Ullstein, criou, em Portugal, uma firma de importação de máquinas de
impressão. Por seu lado, Siegfried Weinberg, chegado a Portugal em 1937,
começou por trabalhar na Relojoaria Alemã de Isaak Wackmann, além de fazer
objectos de utilidade doméstica que depois vendia nos mercados. No final dos
anos trinta, fundou, na Rua Ferreira Borges em Coimbra, uma empresa de
importação e exportação de vidros e utensílios domésticos (Weinberg Lda.) e,
depois da guerra, em 1951, ergueria em São João da Madeira, a conhecida empresa
de colchões Molaflex.
Em Abril do mesmo ano de 1936 em que Siegfried Weinberg fugiu de Hanau,
na Alemanha, chegou a Lisboa, no navio «Monte Olívia», o casal Herbert e Ursula
August, de Magdeburgo. Apenas traziam consigo 10 marcos, uma bicicleta e uma
máquina de cozer. Enquanto Ursula cozia para fora, Herbert começou por vender,
de forma ambulante, gravatas, lâminas de barbear e outros objectos. Depois, o
casal introduziu, em Portugal, os primeiros ursos de tecido (Teddybear), confeccionados por Ursula,
que vendiam às lojas de brinquedos, tanto em Portugal, como em Angola e
Moçambique.
Alguns, embora poucos, entre os que chegaram nos anos trinta, conseguiram
ainda exercer a sua profissão. O médico patologista, Dr. Friedrich Wohlwill,
natural de Hamburgo, ingressou, no Instituto Português de Oncologia. Chegado a
Portugal, em 1934, Wohlwill foi recomendado, três anos depois, junto de
Salazar, pelo Professor Pulido Valente, aliás, um adversário político do
ditador, para preencher a cátedra de Anátomo-patologia, ate então inexistente
em Portugal. Em Março de 1938, o capitão Paulo Cumano, da Polícia de Vigilância
e Defesa do Estado (PVDE), avisou o governo português que 5.000 médicos iam
deixar a Alemanha e que a sua fixação em Portugal «seria funesta para os
médicos nacionais».
Essa preocupação espalhou-se aos deputados da Assembleia Nacional, que
aprovaram, em Abril 1939, a lei n.º 1976, proibindo o exercício de Medicina a
todos os estrangeiros que não tivessem feitos exames de equivalência, até 28
Fevereiro desse ano. Por exemplo, o médico alemão, Edmund Israel Werner, chegou
a Portugal em 24 de Fevereiro de 1939, e solicitou, seis semanas depois, a
prestação de provas, mas foi-lhe recusado o pedido para montar uma clínica na
Madeira. Mas, nesse período, já havia muito que tinham começado a surgir nos
jornais portugueses anúncios reveladores da forma como alguns refugiados
escapavam à proibição do exercício de uma profissão por estrangeiros. Veja-se
apenas um dos muitos que foram publicados, na secção de anúncios do Diário de Notícias: «Explicações de
alemão e inglês» (6/4/1941). Em Março de 1942, juntou-se à proibição do
exercício de outras profissões liberais, o impedimento de engenheiros e
arquitectos estrangeiros trabalharem em Portugal.
[1]
Este texto baseia-se no meu livro, Irene Flunser Pimentel, Judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial (Lisboa, A
Esfera dos Livros, 2006)
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Obras já publicadas pelo autor
Judeus em Portugal durante a II Guerra MundialVítimas de Salazar Mocidade Portuguesa Feminina Biografia de um Inspector da PIDE Cardeal Cerejeira Espiões em Portugal durante a II Guerra Mundial O comboio do Luxemburgo |